Uma
das experiências mais vívidas que tenho com relação ao RPG é referente a um
LARP realizado em Poços de Caldas, Minas Gerais, lá pelos meados dos anos 90.
Estávamos jogando Vampiro: A Máscara,eu interpretava um Vampiro do clã Toreador.
Este clã é conhecido por ser o clã dos artistas, ou no caso dos menos
talentosos, os chamados blefadores.
“Como todos os artistas autênticos, (os Toreadores) buscam por uma verdade além
de uma existência que temem seja desprovida de sentido” (HAGEN, 1994, p. 134).
Não
me lembro da história. Também não me lembro da personagem, nome, história...
Apenas o clã. A trama, fosse qual fosse, se passava em uma exposição de quadros
na Casa da Cultura da cidade. Como era um LARP nós realmente fomos para a
exposição na Casa da Cultura, mas representando nossos personagens e seguindo
uma tradição vampírica, denominada de Máscara, nos misturamos entre os mortais
(as pessoas que não estavam jogando) sem que ninguém notasse o que ocorria. Se
as pessoas notassem que havia um jogo em andamento, seria como se a Máscara
fosse quebrada. Quebrar a Máscara significa expor-se como um vampiro aos
mortais, uma experiência que vem sendo evitada na tradição vampírica desde a
idade das trevas... “o Role-play leva a
catarse do teatro um passo além. Mais do que ser testemunha de uma história se
desdobrando, como um espectador, no Role-play a história de desdobra com você.”
(ALVES, 2010, p.10)
Não
quebrei a tradição da Máscara, mas interpretando meu personagem passei a
observar as obras da exposição. E, representando um defeito inerente ao meu clã[1],
parei diante de um quadro ficando imerso nele por vários minutos. Observei cada
detalhe, busquei cada significado possível, e por mais que desejasse voltar
para o jogo, não podia, pois estava tão empenhado em jogar que deixar de
apreciar aquele quadro seria deixar de jogar. Aos poucos, os outros jogadores
foram se dando conta do que ocorria e logo estava debatendo o significado do
quadro, apontando seus traços, investigando os significados dados pelo pintor.
Ao mesmo tempo, busquei uma sabedoria escondida em meu ser e quando percebi já
questionava a interpretação da outra pessoa a meu lado.
O
interessante é que não saí do personagem em nenhum momento e quem falava comigo
não estava no jogo. Se eu não conseguisse convencê-lo de que compreendia a
obra, seria, para mim, como se fosse desmascarado. O debate artístico foi tão
efusivo que aos poucos os outros jogadores foram parando de jogar. Paravam à
nossa volta para ouvir nosso debate sobre arte. Naquele momento, eu era tão
preparado para interpretar a obra quanto o meu companheiro de conversa, um
senhor de cabelos grisalhos e bem mais experiente.
Se no
teatro observamos sempre que o prazer experienciado pelo público é diferente
daquele experienciado pelos atores, temos no LARP uma fusão de experiências. O
jogador vive um prazer pleno, tanto pelo exercício autoral de sua performance,
a recepção da performance dos outros jogadores, quanto pela relação entre esses
múltiplos autores e receptores (ALVES, 2010, p. 10).
Jamais
faria isso, àquela época, se não estivesse jogando. Livrei-me de todas as
correntes que poderiam prender minha compreensão acerca daquela obra, afinal,
naquele momento era um artista, um especialista e tinha total confiança no que
afirmava. Lembro-me até hoje do quadro, da mulher caindo de um castelo
medieval, sendo seguida por um homem vestido de nobre. Do espaço negro que os
envolvia no melhor estilo Caravaggio e do riacho ao fundo do castelo. Parecia a
Torre de Londres. Lembro-me também da interpretação que fiz, ligando o quadro
às cartas do Tarô e a referências bíblicas. Alguém pode dizer que “viajei”, que
foi um devaneio, mas acredito que naquele momento a teoria da Zona de
Desenvolvimento Proximal estava em ação, graças ao RPG.
Quando
saí aquele velho homem de barbas brancas afirmou “Realmente tem muito haver”.
Colocou a mão no queixo e pôs-se a analisar a obra por longos minutos. Creio
que como eu, ele nunca mais se esqueceu daquele quadro. “[...] da colaboração
do menino com as pessoas que o rodeiam, de sua experiência social, nascem as
funções superiores da atividade intelectual” (VYGOTSKY, 1997, p. 219).
Esta
experiência retrata bem a possibilidade de se usar o RPG para o segundo eixo do
ensino de Artes, Apreciar. Obviamente
não é necessário sair de casa e se dirigir a uma exposição real usando o LARP.
Se for possível vai ser ótimo, a escola tem de extrapolar seus muros,
entretanto, no RPG de mesa a imaginação é o limite dos jogadores. Uma história
pode ser ambientada nos mais diversos tipos de cenários culturais, onde é
possível levar os alunos a entrar nas obras, numa experiência diferente daquela
de uma aula tradicional, na qual se fala de pinturas e se mostra um quadro
qualquer, mas não se cria uma ligação emocional com a arte.
Apreciar, educar os
sentidos e avaliar a qualidade das imagens produzidas pelos artistas é uma
ampliação necessária à livre-expressão, de maneira a possibilitar o
desenvolvimento contínuo daqueles que, depois de deixar a escola, não se
tornarão produtores de arte. Através da apreciação e decodificação de trabalhos
artísticos, desenvolvemos fluência, flexibilidade, elaboração e originalidade -
os processos básicos da criatividade. Além disso, a educação da apreciação é
fundamental para o desenvolvimento cultural de um país. Este desenvolvimento só
acontece quando uma produção artística de alta qualidade é associada a um alto
grau de entendimento desta produção pelo público (BARBOSA, 1998, p. 04).
Segundo Lourenço (2003), entre diversas
possibilidades, o professor de artes visuais pode apresentar pinturas,
desenhos, grafittes, artes digitais ou esculturas, inseridos em determinada
história, mas não com o objetivo de conhecer a vida do artista que as produziu,
mas para o fruir da obra. Outra possibilidade é que trabalhe uma história
investigativa, num clima de mistério, na qual os jogadores vão encontrando
pistas de seu objetivo nas próprias obras de arte, levando-os a uma leitura
aprofundada da imagem, trabalhando a decodificação e a interpretação.
[1] “Os membros do clã são a um só tempo prisioneiros e beneficiários de sua visão e sensibilidade artística. Costumam ser ofuscados pela beleza que os cerca, e ficam paralisados de fascínio. Podem ser cativados por coisas como pinturas, letreiros em neon e mesmo auroras.” (HAGEN, 1994, p.135).
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